quinta-feira, 19 de junho de 2008

O livro falou


Outro dia, após o expediente normal de trabalho, estava visitando uma empresa. Não tinha ninguém no departamento de Marketing - e eis que estava eu lá sozinho aguardando para ser atendido. Fazendo-me companhia, o livrão azul do Kotler. E não é que o livro foi logo me cumprimentando. Pelas capas enrugadas e as bordas encardidas, percebi seu desespero por um desabafo. Ele tomou coragem e me deu um alô.

Atônito e tomando o cuidado para que ninguém percebesse que estava a conversar com um livro, fui logo perguntando, mas num tom bem baixinho: “Que queres de mim?”

Foi como se tivesse puxado a alavanca do basculante, e o caminhão de melancia pôs-se a despejar as pesadas redondas sobre mim. Foi reclamação atrás de reclamação! E nessa medida, ficava cada vez mais ruborizado e com receio que alguém me pegasse em flagrante.

Até entendi seus protestos. Concordei inclusive com a grande parte do que considerei justo e procedente. Só não dei pelota pra crise de auto estima pois dentre os muitos alunos que o carregam no dia a dia, há uns pares de rebeldes que cismam em não aprecia-lo no todo. “Não dá para agradar a todos” retruquei.

Tentando não deixa-lo ainda mais melancólico, com jeito apaguei a luz e despedi-me, dizendo-lhe que precisava seguir para a minha reunião.

Enquanto andava por aquele longo corredor, os seus reclamos continuavam ecoando em minha cabeça: que os estudantes preferiam as fórmulas prontas; que davam crédito demais aos professores; que estes sabendo disso abusavam; que nas empresas – como estagiários, eles sempre puxavam uma sacada aprendida e utilizavam-na como panacéia; que faziam suas obrigações sem olhar o todo – permanecendo atrelados a uma só árvore da floresta; que não se preocupavam com resultados e medidas, mas sim com a atividade per se (gastou o latim nessa); que gostavam de criar e planejar, mas nada de carregar pianos ... E olha que isso é uma lista parcial.

Mas o que me pareceu mais forte, e que realmente me derrubou do meu par de 45, é que ele sublimou a literatura como meio de se fazer marketing, em detrimento da aridez (foi assim mesmo que ele se descreveu) e tecnicidade de termos e esquemas didáticos de suas páginas.

No nosso diálogo curto e sempre em voz bem baixa, o que mais me tocou foram suas últimas palavras, já no escuro da sala: “Tem que ter alma de artista ... o marketeiro que não entende de literatura, não sabe contar história, não tem sensibilidade para a música, não aprecia a estética do belo, não tem sensibilidade ... nunca vai ser um bom marketeiro ... por mais que ele me leia e re-leia!!”

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